Lambança à Caruru
Marta Picchioni, 2023
Caruru é nome com gosto.  
Lambança é dança de língua. 
Coisa de se comer com o corpo inteiro
refazendo-se pelas mãos e bocas 
de quem o degosta
Provamos de um corpo memória:
da viscosidade do dendê ao quente-pimenta, 
do quiabo em baba aos vestígios do camarão.
Entre tempos-temperos 
Kalulu, caá-ruru
a presença preta e indígena em terras baianas 
Seu gosto múltiplo conecta 
língua de quem come, mãos de quem faz.
Caruru,
convite à boa mesa
arte de rejuntar aquilo que uma certa tradição separou.
ocasião para se recriar 
um estado de oferenda
à nós, Exu e Xangô!
humanos e deuses que sabem o que é bom
Lambuzar-se de tinta e comida 
tarefas de um corpo que sabe onde vai e,
ao responder às interrogações de seu tempo 
nos oferece seu nó.
Pinturas
Amanda Arantes, 2022

Essa exposição reúne obras de duas artistas que se debruçam sobre temas distintos: Sofia Lotti pinta paisagens, Andrea Brazil produz obras abstratas. Ambas compartilham o interesse na cor como elemento fundamental de suas pesquisas, e compartilham também a recusa em declarar um significado unívoco em seus trabalhos. Reunidas aqui, as obras se apresentam ao mesmo tempo cheias e vazias de mistério: ora como pura superfície, ora criam espaços por onde podemos adentrar.

Certos aspectos de suas trajetórias são pertinentes para a compreensão de suas obras. Sofia viveu por muito tempo em uma fazenda situada nos arredores de Poços de Caldas. Iniciou sua prática artística com trabalhos abstratos, depois passou a observar e fotografar elementos da natureza - desde folhas de eucalipto a paisagens rurais -, produzindo imagens a partir das quais realiza pinturas em têmpera ovo e desenhos em pastel seco - material que a própria artista produz – além de bordados e tapeçarias que permitem expandir suas experimentações em torno da representação da paisagem. Andrea vem de Salvador e tem grande afinidade com as paisagens marinhas, que ainda vivem em suas memórias da infância. Sua prática partiu do desenho e da ilustração para então chegar à pintura, inicialmente figurativa e agora abstrata, sempre interessada nas possibilidades de criar espaços a partir de campos de cor que são pontuados por composições geométricas.

Suas trajetórias percorreram caminhos diversos para finalmente se encontrarem aqui, onde, lado a lado, iluminam-se reciprocamente. Nos trabalhos de Sofia, o empilhamento de áreas de cor, dispostas mais ou menos horizontalmente e pontuadas por elementos que remetem a formas orgânicas, torna a imagem reconhecível enquanto paisagem. No entanto, algo se oculta na sombra. Há sempre algum elemento indefinido, uma área que poderia ser um arbusto, um pedaço de chão, ou qualquer outra coisa que se mantém inacessível. Do mesmo modo, as obras de Andrea exigem do observador um olhar ativo, um esforço para tentar ver algo que nunca se mostra por completo. Em suas pinturas, a artista faz surgir espaços a partir da vizinhança das cores e do recurso do desenho – realizado em grafite sobre a pintura - que imprime formas possíveis à composição. Suas obras dão a ver o processo da pintura, suas metamorfoses, tudo aquilo que é possível ver por debaixo da superfície.

Sofia e Andrea vivem e trabalham em São Paulo e talvez por isso suas obras compartilham um certo sentimento de deslocamento, um desejo de pintar paisagens de lugares situados longe daqui. É no espaço do ateliê e no trabalho incansável da pintura que as duas artistas materializam suas experiências estéticas, mantendo suas obras abertas, recusando a necessidade de fazer grandes declarações, e sempre sensíveis às paisagens que percorrem em seus trajetos e memórias.

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Amanda Arantes é pesquisadora e curadora, bacharel em História da arte pela Universidade Federal de São Paulo e mestre em curadoria pela Universidade de Essex, Reino Unido. Entre 2015 e 2019 fez parte do Núcleo de pesquisa e curadoria da Pinacoteca de São Paulo. Em 2020, recebeu o prêmio Thomas Puttfarken Prize por sua pesquisa de mestrado voltada ao estudo de exposições de artistas brasileiros realizadas pela ESCALA - Essex Collection of Art from Latin America. Tem interesse em temas relacionados à história da arte no Brasil e ao colecionismo de arte da América Latina, com foco em coleções públicas.
Forma é afeto
Shannon Botelho, 2021

A afirmação, que parece não se sustentar, encontra um sentido muito preciso nesta exposição ao enredar as três pesquisas visuais que aqui se apresentam.  Reunidos incialmente por uma afinidade formal, os trabalhos ordenam um sentido pouco explorado nas poéticas que flertam com a herança construtiva e seus desdobramentos. Entretanto, não desejamos convocar o programa concretista brasileiro, nem mesmo propor outras significações para as suas continuidades. Antes, desejamos ampliar os meios de acessar as obras que, pela forma, inevitavelmente atravessam o seu universo e constroem para si, outros modos de ordenar o espaço visual e as ideias através da noção de afeto. Por esta razão, Luciano Macedo – artista representado pela galeria – convida outras duas artistas, Andrea Brazil e Mariana Guimarães, cujos trabalhos selecionados partilham um mesmo conjunto de interesses.
Não se deve confundir afeto com passividade, nem com a primazia dos sentimentos sobre a razão. Como definiu Spinoza, afeto é o que move a alma, força capaz de gerar movimento, fluxo de vida e, consequentemente, interesse. Resulta desta força motriz, o que aqui podemos verificar, para além das formas geométricas presentes em todos os trabalhos que nascem de uma percepção aguçada do tempo, da vida cotidiana. Não são resultantes de simplificações formais ou de estruturações geométricas fechadas em si mesmas, antes exploram as diferentes aparições dessas formas na vida prosaica transmutando-as para a superfície das obras. 
De um modo bastante peculiar, os trabalhos selecionados para esta exposição falam de vida. Nascidas em contextos distintos, todas resultam do dia a dia dos artistas, que observam a projeção das sombras nos espaços, as cores nos muros das cidades, os frisos dos carros, as fachadas dos prédios, a retidão geométrica dos cubinhos de legumes para uma sopa. Sim, pois, se aos trabalhos construtivos foi negada uma ligação com a vida, aqui afirmamos que a geometria que nos interessa é sensibilizada pela vida e que, sem este estado de afeição, ela não subsiste no mundo contemporâneo. 
Assim como é a vida, repleta de caminhos não retilíneos, os trabalhos de Luciano Macedo espelham alegoricamente as possibilidades combinatórias da geometria sem perder o contato com o cotidiano. As formas dispostas em arranjos progressivos quase simétricos, trazem consigo em uma dimensão simbólica as escolhas que fazemos. O mesmo acontece nas obras de Andrea Brazil, onde as formas subtraídas de frames do cotidiano endossam as memórias e falam do tempo, do processo e de escolhas. Os bordados geométricos de Mariana Guimarães não são diferentes, pois apresentam uma pesquisa sobre o cuidado e intimidade.  Sejam os arranjos visuais de Luciano, os planos geométricos de cor de Andrea ou a geometria sensível de Mariana, todos os trabalhos falam de uma imponderabilidade da forma plástica, esta sim, incompatível com a geometria. 

Por isso, Forma é Afeto. Ao livrar-se dos limites da geometria estrita e ao abraçar a imprecisão do criar, estabelecem sentidos específicos para os seus trabalhos, distanciando-se das noções prontas sobre a abstração geométrica e lançando-se no terreno da descoberta, do tempo. Fica, portanto, o convite para nos aproximarmos dessas formas imponderáveis, deixar que elas se comuniquem conosco, contando o quanto de afeto trazem para nós.
........ Seu poema: Andrea Brazil e Fabiañá Préti
Vivi Villanova
São Paulo, Agosto de 2021
Colei um aviso no espelho:
É impossível odiar a matéria e amar a forma.
- Louise Glück

Os oito pontos do verso que dá título à exposição de Andrea Brazil e Fabiañá Préti, guardam em si um poema de amor à matéria. Este mesmo ponto-forma que no coração da poeta germina palavras, na mão das artistas é matéria prima a observar caminhos. Nas pinturas aqui reunidas, o ponto se põe em movimento pelo desejo de criar composições que oxigenem a faísca de ser e, contornando o espaço, investiga diálogos entre as nuances do indivíduo e a beleza do universal.
Nas telas de Andrea Brazil, o ponto se move ao sussurro do linho que carrega em si a tradição da arte, se arrisca pelas tramas de um tecido que há mais de cem anos acompanha a família e pelas paisagens da infância também registradas nas pinceladas do avô. Objetos do cotidiano compõe campos de cores autônomos que se formam à medida que o olho, sem o acolhimento da perspectiva, é encorajado a exercitar sua autonomia. A verticalidade que extrapola os limites da tela faz desvios inesperados e enfatiza o estranhamento, o mesmo que o corpo sente ao buscar uma fórmula própria de deslocamento no mundo.
Na pintura de Fabiañá Préti, o ponto escorre, canta e cala. É um ponto música, mas também um ponto história. A pincelada carrega o contorno dos azulejos modernistas, experimentações da arte óptica e o pontilhismo praticado quando criança. Na tela 08 da série Faz Litoral, toda a composição acontece a uma distância da borda, respeitando o silêncio entre o pensamento e a fala. Silêncio que a artista cultiva como a materialidade do estar. No grupo de pinturas em voil, as linhas pintadas na frente e no verso interagem com as marcas do tecido criando estâncias para o olhar. O corpo se resguarda na ilusão do através.    
“É impossível odiar a matéria e amar a forma” diz um dos avisos colados no espelho de Louise Glück, autora do verso que dá título à exposição. Andrea Brazil e Fabiañá Préti reiteram o pensamento da poeta, celebrando o ponto como matéria primeira que guarda em si a potência geradora da forma. E assim como o poema que habita os oito pontos do título, é no pulso de dentro e não nos contornos de fora que a pintura se organiza.
Experiências do Tempo: o Ateliê 100 faz 10 anos
Shannon Botelho,  2021
Qualquer tempo é tempo. A hora mesma da morte é hora de nascer.
Nenhum tempo é tempo bastante para a ciência de ver, rever.
Tempo, contratempo, anulam-se, mas o sonho resta, de viver
Carlos Drummond de Andrade

Imperativo sobre tudo e todos o tempo é, antes de tudo, uma experiência. Face dupla de algo, ele pode ser criador ou criatura, medida ou combustível. O tempo é fluido, múltiplo. Caracteriza-se por uma constante que nos traz até aqui hoje para celebrar os 10 anos de O Ateliê 100, lugar onde Ana Rey, Marinalva Rosa e Rita Heckert realizam suas pesquisas e produzem os seus trabalhos. Nesta ocasião, as anfitriãs convidam outras duas artistas, Andrea Brazil e Michelle Rosset, para comporem a exposição.
Assim como o tempo que se apresenta diferente para cada indivíduo, as poéticas das artistas possuem interesses peculiares, revelam um enfrentamento do mundo e do transcorrer dos dias. Apesar das diferenças formais e de pesquisa entre os seus trabalhos, há um nexo entre eles que se estabelece no interesse pela cor e pela forma no exercício ampliado do desenho e da pintura. Em virtude destes interesses, os quais as artistas convidadas compartilham, é que pensamos em abordar as Experiências do Tempo. Pois, se o tempo é uma medida e um meio pelo qual experimentamos o mundo, todos os trabalhos aqui encapsulam em si mesmos os momentos de suas criações, concepções e projeções.
Ao longo destes dez anos as artistas de O Ateliê 100 puderam desenvolver seus trabalhos, transitando entre os domínios da pintura, do desenho, da escultura e dos objetos. Em Experiências do Tempo vemos que o interesse pelo cotidiano, seja nas formas reais do mundo, das frestas das janelas, nas folhas de revistas, tornou-se um meio de experimentar a própria vida, revelando-se como um modo comum de operação poéticas nos trabalhos.   
O relembrar e o projetar encontram-se no campo movente do agora. Aqui não falamos simplesmente do passado ou do futuro. Antes, adentramos o presente com as vivências passadas e as ideações do porvir. Experiências do Tempo, portanto, é um espaço de partilha das memórias, dos sonhos e daquilo que desponta como horizonte possível para cada uma das artistas e suas poéticas.
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